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O tempo levou tudo: A juventude, a ligeireza, o riso fácil, o homem. O tempo deixou-lhe no regaço as memórias para se entreter nos dias frios ou para espairecer o abafado nos Estios por chegar. Lembrava-se quase sempre das mesmas memórias, não sabía bem porquê, tão pouco podía dizer serem as suas favoritas já que não se lembrava das outras. Porém naquele dia, o tempo trouxe-lhe de volta o cheiro do primeiro beijo do seu homem. Sentiu-lhe nitido no olfacto a saliva macia e brilhante, o lábio inferior carnudo, depois o de cima firme. Levou a mão à boca e feliz recebeu de novo o calor do beijo há tanto partido.
Os que melhor lhe sabíam eram os roubados, escondidos, os de socapa e de surpresa, os que provocavam o riso nele, quase eléctrico do nervoso do que não sabía ir receber. Oferecía-lhe os seus beijos preciosos porque eram os de apetite, não os que devolvía no reconhecimento de ter sido beijada e agradada retribuía, os seus melhores eram sempre aqueles que lhe subíam pela garganta e quase transbordavam nos olhos, tal era a força. Explodía-lhe os beijos nos lábios e ela feliz só quería entregá-los na boca dele.
Quando eu era menina recebía beijos que chamavam beijinhos. Mas foram sempre esses pequeninos os maiores que recebi pela vida fora. Eram dois beijinhos nas bochechas, um beijinho à esquimó esfregado na ponta do nariz, um beijinho na testa em guarda e respeito. Agora crescida, já me deram beijos e de palavra grande tiraram da boca tudo o que pequenino se possa sentir.
Deixou descaír a cabeça sobre o ombro levemente. Fazía-lhe falta um ombro que não fosse o dela mesma. O momento exigía-o: no ecrã o herói segurava com força e ao mesmo tempo com carinho na rapariga de rosto molhado de lágrimas. Trocaram palavras juradas em amores eternos. As bocas muito próximas. E ela a assistir ao beijo, sem ninguém para beijar naquele escuro do cinema.
Fez da boca as mãos. Tocaram no corpo todo, um rasto de saliva desenhando caminhos até ao abismo, a vontade do suicidio, premente, urgente caír e despedaçar-se nos lábios que eram também olhos, olhares cerrados, cantigas de cor nos gemidos baixos ou nos sussurros incompreensíveis do desejar. A boca é um sexo. Sem pudor porque se descobre natural quando alimenta outras bocas, outros beijos que explodem no clímax da troca.
Sabía da mentira, do engano, do fingimento tão sentido quanto um bom actor na tela que faz de conta que ama a heroína e afinal é só técnica. Sabía de tudo e aprendera a desilusão, talvez o ódio de se manter o logro achando que do outro lado não transpira o que não se sente. Deixou, como sempre, que ele a beijasse. Deixou que ele chegasse próximo da sua boca e ao invés de lhe declarar a mentira devolveu-lhe no beijo uma mordida de raiva.
Sonhava que o beijava. Ou que deixava que ele a beijasse. Misturava-se tudo num sonho acordado ou então, mesmo antes de adormecer, já de olhos fechados e a inventar diálogos entre ele e ela, depois apenas um murmurio, o rosto alçado pronto para receber nos lábios os lábios dele. Ele havía de a beijar docemente, devagar, primeiro a olhá-la nos olhos, depois os dois de olhos fechados e ainda assim ela vê-lo-ía a beijá-la. E sería bom. E querería mais. E ele não passaría sem os beijos que se oferecíam naquela imaginação e que só existem quando ainda não foram dados.
Quente. Húmido. Macio. É disso que se recorda, do resto à volta não tem lembrança, onde foi e como começou também não. Só quente, muito quente até, como se escaldasse na barriga. Ficou sempre com essa sensação. E também de se encontrar sózinha sem mais ninguém, mas não era naquele sitio era no mundo, no universo, todas as estrelas e galáxias tudo desaparecido, como se estivesse debaixo de um lençol branco muito macio, os pés um palmo acima da terra e descalça. Descalça. Quente. Orvalhada pelo beijo.
Já te contei alguma vez a história do beijo? Não. Então chega ao pé de mim, aproxima os teus lábios para que os meus lhe segredem esta história de encantar.
Estranho íman o que atrai a boca para outra, apenas pelo sentido de boca, lábios, lingua, sem necessidade de outro sentido que não o do prazer primeiro de beijar, sentir todo o corpo numa boca, bizarro desejo que consola quando as bocas se juntam e tomam o paladar excitado das pimentas no húmido consolo do beijo. O beijo pelo beijo. O orgasmo do beijo.
Anda dá-me um beijo, e ela fugia no riso mais do que na vontade de dizer não. Era tudo um jogo, um jogo encantado em que a qualquer momento ele a agarrava e a prendía e ela fingindo que não quería deixava tomar-se nos braços, de olhos fechados e boca inquieta na ansiedade do gosto sentido, repetido, dá-me um beijo.
Depois de tudo trocado, entregue, lembrado os instantes como distâncias longínquas, o corpo agora afastado pelo fosso do ponto final, o que parecera grandioso ficava pequeno nos objectos que havíam perdido o valor, todo um brilho que enganara os tolos sobre um ouro fingido. Nada é para sempre, pensaram. Mas não o disseram, retiveram essa mágoa para si como um respeito que sela a caixa que se entrega nas mãos do outro. Foi por isso que nem um beijo mais ofereceram na despedida.
De todas as palavras que deitou na carta, sentidas, comovidas, apaixonadas, nenhuma tinha a força igual da que no singular enviava em despedida singela quase a roçar o despercebido. E no entanto, podíam as folhas seguir na ausência de outro verbo que aquele beijo era o bastante para encher e insuflar o envelope de tudo quanto guardava no peito. Um beijo e assinou.
Fica comigo para sempre, e nesta comoção aproximava o rosto do dele, as mãos presas num querer e num agarrar como se possível fosse segurar a vontade e o coração, fica comigo para sempre, sempre e quase lhe tocava a boca, dava para sentir o morno dos lábios, o hálito das palavras sofridas na antecipação das saudades da partida, fica, fica, diz que é para sempre e ele suado de tanto correr para o pedido dela respondeu-lhe um beijo.
Um beijo técnico. Mas de convicção bastante para que quem os visse desejasse que não houvesse fim naquele encostar colado de bocas. Ou de queixo. Ninguém percebería se fosse executado como profissionais dedicados à arte. Depois, fora para isso que os primeiros havíam estudado e os segundos pago o bilhete. Não se esperava outra coisa. Um beijo técnico que não pareça outra coisa senão um beijo de amor, longo, húmido de lágrimas pois trata-se de um adeus. Ao aproximarem as bocas sentiram o morno dos hálitos, depois a moleza dos lábios, a seguir o contacto molhado das linguas. Corta! (Quem mandou sentir amor?)
Na admiração extrema que lhe dedicava sentía-se pouco ao dizer-lhe o quanto ela lhe era. Quería-lhe bem, um bem profundo e puro como uma protecção de amuleto que se oferece a quem se estima e se pede guarida aos anjos. Amava-a, mas não o amor de homem e mulher ou o outro fraternal e carinhoso, era um amor de fascinio, de pedestal, de homem para deusa, uma amor platónico e descrito nos romances à moda antiga. Quando dela se abeirou, baixou os olhos no respeito que lhe tinha e incapaz de outro gesto beijou-lhe a palma das mãos.
Quando quería atingir um propósito oferecía um beijo, assim como uma coisa rara, mas a intenção era tão banal que da pureza do acto nada sobejava para além do som de metal. E com o passar do tempo, foram-lhe escasseando os motivos para beijar. Ora porque se lhe tornaram conhecidos os intuitos, ora porque a beleza do beijo oferecido parecía disfarçada, ora porque a generalidade com que demonstrava a vontade lhe retirava o brilho do especial.
Um dia, pobre, teve de pedir para a beijarem.
E nunca tanto aquele beijo a magoou como outra dor que houvera sentido.
Preciso de manter a paixão, por qualquer coisa, por alguém, ou definho aos bocadinhos e dolorosamente lenta.
Por isso dei comigo a pensar em beijos. Não obrigatoriamente em beijos de boca mas o que o beijo quer traduzir no acto amoroso de se querer bem a outrém.
O beijo. O conceito. Os conceitos.
A poesia do beijo e os poemas ao beijo, o romantismo exarcebado nas palavras tantas que o beijo diz.
Deu-lhe um beijo de raspão mal sentindo se a boca dela estava quente, se ainda dormía ou se se entreabría para respirar pelas horas de sono. Ele fez o que o hábito lhe mandava: Despediu-se e foi-se.
Mas mal bateu a porta ela abriu os olhos, correu até à casa vizinha e antes mesmo que se fechasse a outras indiscrições o que ali iría acontecer, ela dirigiu os lábios, húmidos, sedentos, sofregos. (O beijo). E traidores.
Nem de ameixa, framboesa ou morango: Baton algum lhe dera o sabor especial e requintado que o beijo dele lhe pintara na boca. Deixara-lhe um traço brilhante, uma réstia de saliva comungada nas bocas silenciosas que se beberam pela eternidade. Os beijos têm cor, paladar e cheiro, depositam nos lábios alheios o que de si veio de dentro e sorvem no requinte indelével a marca do outro. Não, não havía maquilhagem melhor que o beijo dele, os beijos dele em profusão, longos e lentos, e depois os outros soletrados na afeição da pele da boca ou então o solitário, tão grandioso como um poema.
Muito próximos um do outro, quase abraçados. Ela de cabeça ligeiramente vergada pelo peso da saudade que irá sentir, as lágrimas ainda no brilho, lagos no peito, voz mordida. Ele à sombra da aba do chapéu de caxemira fala-lhe no que tiveram, o que sempre hão-de ter. Por cem anos que passem nunca lhes hão-de roubar o beijo. Foi em Paris? Que interessa... Foi o beijo deles, a singular entrega que a boca passa à outra nos segredos profundos de quem se quer. Despedem-se. Os lábios só servem hoje para dizer adeus. As palavras beijam-se.
Não, beijos não, como beijar se a vontade é bater, gritar, chamar o inferno aqui e agora, queimar tudo raso?!
Beijos para fingir que está tudo bem? Tudo esquecido?
Beijos para perdoar quando o peito está rachado ao meio e não consente?
Beijos são para amor, perdão, para vem até mim e toma o que te sou!
Hoje não sou beijo, nem um pouco, sou ferrão, sou sangue, sou amargura!
Não... Beijos não... Como podía? Se já te beijei ao amar-te e agora não te quero mais?
Atirou-se de olhos fechados. Só quería sentir a carne mole, húmida, escorregadia. A sua boca apetecía-lhe naquela boca, os lábios sorvidos, chupados, depois a ponta da lingua a achar a outra ponta da lingua até entrar toda e ficar a saber o sabor do céu da boca, dos dentes, dos segredos que se aninhavam. Lamber, lamber muito os lábios e prendê-los entre os seus até à dormência que entontece a cabeça.
Abriu os olhos, continuou no beijo quente, a admirar-lhe as pestanas caídas a cobrirem os olhos dela, a face escaldada do prazer.
Rodou a lingua dentro da boca dela, devagar, tacteando cada papila que se lhe colou, puxou mansamente o beiço inferior, beijou ao de leve aquela boca, aflorando, mal tocando, roçando...
E fechou os olhos para começar tudo de novo.
Não lhe custou vê-la afastar-se nem a dar o corpo aos abraços de outras mãos que não as suas. Nem o riso forçado a mostrar alegria que mal sentía.
O que doeu foi o beijo.
Assim. Entregue de uma forma qualquer sem cuidade nem respeito. O beijo a mostrar tudo, todos os segredos. Os dele e os dela. Um beijo que quería parecer igual aos que já sentira e agora a boca secava-lhe. Talvez de raiva. Ou despeito. Ou mingua.
Que interessava? Ali estava ela a beijar como se não fosse importante. Esquecida das tantas vezes que tinham feito amor apenas no aflorar dos lábios.
É na boca que começa. Que te tomo primeiro que tudo e te faço em eu, no meu, no que sou e não conheço. É na tua boca que me liberto e me domas como um animal enjaulado à espera da sua ração babando a fome de carne. Da tua boca. É nela que se inicia o ritual das águas, as salivas e os sémens, os fluidos e as lágrimas, o prazer e a dor do prazer. Somos principiantes, aprendizes de beijos toda a vida e nos teus lábios vejo linhas em que decoro palavras, depois esqueço-as só para que mas ensines de novo. Na tua boca. Vou até ao céu na ponta da lingua e no polme e afogo-me entre sentires e comoções. Beija-me devagar, leva de mim mas aos poucos.
Era tanto o bem que lhe quería que lhe tomou as mãos, aos poucos, os dedos em nós nos dele a aquecerem o que o coração esvaía em palavras caladas e no ruído dos olhos que se abraçavam.
Beijou-lhas nas costas. Depois no miolo, suave. Escondeu outros beijos nos pulsos.
E ainda fresca essa bonomia, deixou-lhe o sinal do beijo na testa bebendo do pensar toda a seiva que corre invisível.
Só depois a tomou nos lábios, nos cantos da boca que se fez rio e matou sedes.
Se dizía não que mais se podía fazer.
Que beijo é coisa que se dá sem se pedir, muito menos implorar, nem pensar em trocá-lo por outra riqueza.
Beijo é beijo, quanto muito rouba-se. Mas só às bocas que o querem ser, que de outra forma serão dentadas com marcas feias e fundas. E das marcas feias e fundas sempre é preferível a dos beijos que tiram o ar e o chão e o céu e cavam mundos novos para quem sente a boca como um animal.
Se é não, não será.
Ou será que é a boca que diz não quando os lábios mentirosos esperam sim, sempre mais e sempre sim...
No fim de tudo restava o caroço, a parte incomestível, o amargo e fibroso de uma fruta que tinha sido delapidada na boca que se entregara a risos e a silêncios, um compromisso sobejamente solene para quem se quisera.
Sobrava o cuspido, contentada a essência com o que houvera de alimento bom nas alturas em que a mão procurava o rosto e os olhos disparavam verbos de sol e o universo era uma palavra que se tinha inventado para eles.
Descartavam-se cascas, discussões e contratempos, raivas e juras, tão fortemente gritadas quanto o havíam sido nas noites sem horas de acabar.
Acabavam-se no beijo perdido, o mais sentido, o mais recusado de todos, o que ficou por despedir no fio de sabor que pudera tornar memória.
Depois de tanto tempo afastados as palavras não fazíam sentido, comiam-se umas nas outras, embrulhavam salivas na vontade demasiado rápida de consumir todo o oxigénio e extinguir a fome.
Saudades.
Um mar de saudades, imensas, desejadas de se entregarem nas mãos do outro, cravadas no peito do outro, uma quase violência de entrar na alma e aí se instalar de tanta dor agudizada na paixão.
Amo-te, queríam dizer calmos, mas todo o sobressalto era o melhor cenário, o único cenário tão próximo de uma morte bela em que se anseia o esquife nos braços do outro.
Não se lembram do que disseram ao mesmo tempo como um eco martelado nas pancadas do coração.
Foi no beijo pegado que melhor enterraram o tempo ausente.